segunda-feira, 19 de maio de 2008

Carta de uma Primavera adiada.

Há alturas em que não pode ser mais. O pó do chão começa a sufocar, e à medida que vais desaparecendo as pessoas pisam-te o corpo porque se esquecem que ainda dói. Tens de te levantar, ainda que as pernas tremam perante tal possibilidade. Que importa que te achem má, e falsa? Que importa, se eles não sabem e não podem dia algum perceber esse mar profundo que queima de frio e calor simultâneos? Que importa, se daqui a um punhado de dias tens uma vida nova para estrear, para te entorpecer a mente num turbilhão de cores novas? Eles não sabem, nem podem dia algum perceber.
Toma. Está aqui um carrinho de linha transparente e uma agulha velha. Se a roupa está rasgada é sentares-te no chão e cozê-la. Não importam as picadas nos dedos…! Olha as tuas pernas em carne viva. Ainda estás aqui, mas daqui a pouco vais embora para um lugar onde esses fantasmas não podem atormentar-te e dizer-te que és má, e falsa. Porque afinal eles não percebem, como nunca perceberam.
Toma. Algodão em água para limpares o sangue na pele e as feridas. Temos força para aguentar o que nunca pensámos poder aguentar, e se ainda sentes quando te pisam as mãos e te cospem o cabelo vira a cara para o céu. É Primavera! O Inverno desfaz-se no teu corpo e apontam-te dedos sujos por só veres uma ponta de Primavera em Maio! E que importa se é Maio, e do outro lado do mundo os campos florescem espontaneamente?
Consegues fazer bem. Prometo-te que consegues. Esquece-os. Esquece-os por uns minutos e fecha os olhos, limpa os pensamentos até não existirem. Fica assim, noite dentro. Não há vozes, nem um único som no horizonte. Descansa. Descansa em paz, porque já nada importa. Quando abrires os olhos, sem dares conta, a vida é outra, ainda que seja a mesma.
“E se estiver a fugir?” Meu amor, fugir foi o que fizeste toda a vida, e o mundo continua a girar. E se fores fugir novamente? E se tropeçares, por engano, em ti? E se te apanhares no comboio de partida e te conheceres no destino?

Hoje, ainda que a tristeza seja a de todos os dias, não te dou palavras doentes. Amo-te, Carolina. E não há nada em mim que não queira ver, mesmo que seja num truque bonito de ilusionismo, esperança nos teus olhos líquidos.
Beatriz.

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